Séries e dossiês

Arquivo Getúlio Vargas

O conjunto mais recente de documentos do arquivo Getúlio Vargas chega ao CPDOC cinquenta anos após sua doação ao Centro em 1973. Essa nova remessa, feita por Celina Vargas do Amaral Peixoto em dezembro de 2022, inclui o caderno inédito com anotações de Getúlio Vargas, após sua deposição em 1945 com o fim do Estado Novo, além dos originais das cartas escritas em 1945 e 1954.

Todos os documentos podem ser acessados online e de forma gratuita.

Três tempos

Não sou candidato nem desejo ser. Se pretendesse continuar no governo em 1945 teria me desencompatibilizado, oportunamente, passando o governo e indo pleitear como candidato. Precisava descansar e permitir que se fizesse a experiência dum novo governo. A experiência está feita. Mas também eu estou mais vivido. O que se fez como obra de desorganização administrativa, de anarquia política é muito grande, para ser corrigido em pouco tempo. Eu prefiro continuar sendo o ex-ditador, como costumam chamar-me alguns flumitivos. E até gosto. O que eles denunciam ditadura é tão melhor do que o que aí está, que o povo já começa a ter saudades. (GV rem 3 06 - pág. 3)

Essas são as primeiras palavras que Getúlio Vargas registrou em um caderno de notas políticas escrito entre 1945 e 1949, recém-incorporado ao seu arquivo pessoal, no CPDOC. Aquele era um momento de mudanças profundas na trajetória do Brasil e do próprio estadista, que tinha presidido o país por quinze anos, desde a subida ao poder, no contexto da Revolução de 1930. Nos seus primeiros anos de governo, Vargas preparou o terreno para uma reabertura política controlada, convocando eleições que lhe legitimaram no poder, como presidente eleito por uma Assembleia Nacional Constituinte. Mas tempos depois ele proibiria as eleições e os partidos, passando a chefiar um regime que cerceou as liberdades civis e políticas por oito anos. Após ser deposto, instalou-se numa fazenda da família, no interior do Rio Grande do Sul, de onde pouco saiu até 1950. Foi ali que fez um inventário dos seus quinze anos de governo, deixando registros desse exercício no caderno tornado público agora.  

Durante o autoexílio, Vargas viu o Brasil, aos poucos, construir sua democracia de massas, retomando o processo iniciado na primeira metade da década de 1930. No caderno, o ex-presidente revela-se um observador atento e, por vezes, um crítico contundente, das articulações e dos atores políticos (o governo, os partidos, a imprensa, o Exército) que integravam o novo regime. A seu ver,

Essa democracia que aí está é o marasmo, a estagnação e o paraíso das negociatas. Esses falsos democratas, desfrutando as posições de mando temem a marcha para a frente, receiam a evolução social. Para eles o ideal da democracia é a manutenção disso que aí está. Receiam defrontar o povo nas urnas e ameaçam com golpes. Os que esperam do voto popular livremente manifestado a solução do problema sucessório não querem golpes, não receiam golpes. Os verdadeiros democratas confiam no povo e esperam, pela manifestação pacífica das urnas, impor a vontade nacional. (GV rem 3 06 - pág. 28)

Vargas reagia aos ataques que o seu governo recebia, considerando-lhes sintomáticos da falta de conteúdo programático dos adversários:

Essa democracia não tem sentido, nem direção, nem plano algum. Vivem de atacar o governo passado, sem nada fazer para justificar sua existência. (GV rem 3 06 - pág. 8)

Em algumas passagens, suas notas tematizam a volta ao poder, oscilando entre a recusa e a admissão da sua possibilidade. Por um lado, seu texto é categórico sobre o desejo de se manter afastado da vida pública:

Estou farto de política e de políticos. (GV rem 3 06 - pág. 9)

Aos que lhes chamavam de “tirano” e “opressor das liberdades”, rebatia:

Hoje quem readquiriu sua liberdade sou eu e estou gostando de desfrutá-la. Não pretendo perdê-la, para voltar ao governo.
Deixem-me em paz. Não me provoquem e sobretudo não me ameacem, porque eu sou capaz de pagar para ver. 
(GV rem 3 06 - pág. 26)

Por outro lado, certos trechos do caderno trazem motivos para se preparar um retorno político:

Os que desejam minha candidatura são em geral e muito particularmente os pobres, os humildes, os esquecidos, os perseguidos, os injustiçados, os que gemem sob o peso insuportável de uma vida caríssima e impostos crescentes em benefício dos tubarões, dos organizadores de monopólios e dos altos dignatários desta democracia(GV rem 3 06 - pág. 24)

Inclusive, chega-se a rascunhar o discurso de candidatura:

Brasileiros amigos eu não pretendo atacar os meus adversários da campanha política. São também homens dignos do vosso voto, são também merecedores do vosso acolhimento, portanto brasileiros amigos escolhei entre minha pessoa e a de meus adversários, se mereço o vosso voto, votai em mim confiantes de que votastes em um homem que pelo menos soube dar aos trabalhadores de todo o Brasil alguns direitos, mas se não mereço, perante vossa consciência, procurai votar em quem vossa consciência melhor desejar. (GV rem 3 06 - pág. 48)

Há, assim, três tempos que se alternam e, às vezes, se entrelaçam nesse caderno de notas: o passado inventariado, o presente comentado e o futuro cogitado. Para o leitor contemporâneo, trata-se de mais um documento que ajuda a compreender a narrativa que o ex-presidente Vargas construiu como intérprete do seu próprio tempo.

 

Jaqueline Zulini e Marco Aurélio Vannucchi